segunda-feira, 23 de maio de 2011

Meu quase-mundo


Carece-me nascer de novo tão intensamente como se logo viesse a morrer de novo.

Assim minha alma sobreviveria a morte que eu teria

E não mais condicionaria como sinal de vida um frágil pulsar sem causa exterior.

Permita-me ser a palavra única desta pagina,

O limite entre o passado e o que ainda estar por vir.

Estou em carne viva.

A borboleta grega de asas azuis fugiu de minha carne talhada na argila,

Quando um estrangeiro diabólico persuadiu-me de que o relógio não é vivo e sobrou-me.

Eu, desde menino, fui conduzido aos caminhos da expatriação.

Tudo me é estrangeiro na pátria que anseio minha.

Agora jazo em terra estranha. Fora do mundo. Sem mundo.

A morte tenta esculpir em mim a ferida que exala aura de dor e silêncio.

E mesmo negra a tinta aqui grafada

Em mim escorre escarlate de minha carne cardíaca.

Palavras escapam-me. Coagulam-se. E estancam em mim a hemorragia fecundante de medo.

Logo silabas e células outras me inferem,

Eliminam as letras mortas, as esperanças e sonhos feitos,

Enquanto toda minha economia participa de minha regeneração, ainda que catastrófica.

Minhas mãos já não reconhecem a forma de meu pensamento,

Resta-me palavras que psicografam as amarguras que sustentam meus ossos fracassados.

Sujei-me em conceitos e metafisicas para não me sujar de mundo.

A carne da carne que fui é arrancada de mim por abutres famintos,

E no silêncio das palavras ditas, habito-me.

Sou a palavra que não se ouve, a palavra que se sente.

A palavra que meus olhos cerrados não podem mais ver

Nem meu tato tatear

Somente a milícia glandular das saudades que sinto, faz-me lê-las para dentro.

Perco-me. Sonho. Paro. Penso. Recomeço.

Não sei mais de mim senão que minhas vísceras reclamam por uma questão de sentido.

A questão que agora sou já se foi, crendo incondicionalmente na aurora vindoura do cavalo branco.

E eu ainda continuo sendo, camuflando-me entre o psicopata amoral e o santo.

Meu corpo todo se inclina a escuta.

O silêncio é a profunda noite secreta deste meu mundo. Quase-mundo!

Tenho de adorá-lo sem palavras.

A mesma medida que o faz ser o faz deixar de ser.

Sei que ela vem. Ainda que encarnada noutras histórias.

Mesmo que demore o tempo da minha vida. (Leonardo Frossard)

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